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sexta-feira, 4 de março de 2011

Conto: "O Tocador de Lira" - de Florbela de Castro




Em tempos idos, em Esparta, na Grécia, quando os deuses tinham por hábito passear e relacionar-se com os humanos, existiu uma bela e culta jovem por quem o deus Apolo teve uma paixão e cortejou, sem no entanto revelar a sua identidade. Lisandra era o seu nome.
Num dos seus encontros secretos, nos arredores, fora do centro da pólis, Lisandra surgiu chorosa e ofegante. Contou que havia sido injuriada por um homem casado, que a quisera tomar como amante e como ela o havia recusado, este iniciara uma campanha difamatória que a pusera em maus lençóis.
A rapariga rogava por uma hipótese de se defender com equidade, mas não sabia como desmascarar o homem e sua esposa (pois esta se unira ao mesmo na campanha) e travar aquela redoma de calúnia. Apaixonado, Apolo, querendo ajudá-la a ilibar-se de todas as acusações, ofereceu-lhe a Lira da Verdade.
Esta lira tinha o dom de revelar a pura essência das pessoas, dos animais e de todas as formas de vida. Com o instrumento em sua posse, a jovem rapariga triunfou na sua busca por justiça.
Agradecida e enternecida, rendeu-se ao belo desconhecido, tendo nascido dessa entrega um lindo rapaz….


A lira permaneceu por algumas gerações na família de Lisandra, rodeada de lendas a seu respeito, até ao dia em que foi vendida pelo seu tetraneto, pois a família achava-se em grandes embaraços financeiros e o instrumento era de ouro.

Vários séculos mais tarde, noutro reino da Europa, havia uma família de mercadores, numa vila à beira mar. O comércio corria-lhes de feição, vivendo desafogados e até se podiam dar ao luxo de coleccionar objectos antigos. Por entre o espólio guardado encontrava-se uma lira muito antiga, cuja proveniência ninguém conseguia mais recordar. Contavam-se na família algumas lendas sobre o dito instrumento, contudo as mesmas eram demasiado fantasistas e poucos eram os que acreditavam. Uma das versões do mito era que quem tocasse a lira, conseguia revelar o verdadeiro interior de cada pessoa, independentemente do seu aspecto físico, mas tal feito jamais acontecera.
Rafael crescera no meio dessas lendas e objectos e tornara-se um belo homem de pele diáfana com corpo esguio, bem delineado e musculado, uns sedosos cabelos cacheados em castanho claro que lhe emolduravam o perfeito mas altivo rosto, um nariz aquilino mas não menos harmonioso, uns lábios cheios e rosados e, como um perfeito acabamento, uns cílios fartos e curvos que encimavam uns amendoados olhos verdes. Apesar de belo, Rafael era frio e distante, chegando a ser trocista, apreciando de longe toda e qualquer azáfama que presenciasse. Não se importava o suficiente com o sofrimento das pessoas, alimentando-se avidamente de querelas, pois estas lhe transmitiam uma sensação de adrenalina. O facto de não se querer envolver em quaisquer disputas só espelhava o seu caráter altivo de que ele próprio se encontrava acima de qualquer modelo.
Certo dia seu pai o mandara catalogar todo o espólio guardado no sótão da casa e ao achar a lira, reminiscências das lendas surgiram-lhe na mente como sussurros, sentindo uma vontade súbita de tocar o instrumento. Contudo conteve-se e guardou-o zelosamente nos seus aposentos.
Após a ceia, já recolhido na sua alcova, o rapaz lustrou a bela lira e dedilhou-a distraidamente, ao acaso. De repente, no seu campo de visão, a flor já murcha, plantada num vaso, que enfeitava o parapeito da janela, refloresceu viçosa e cheia de brilho! Os olhos do jovem mal podiam crer no que viam. Seria tal feito possível ou estaria ele a ter uma alucinação?
Rafael abanou a cabeça, concluindo que talvez bebera uns copos a mais durante a ceia, e continuou a arpejar as cordas da lira.
Naquele momento foi interrompido pela entrada da criada que o vinha instar a dormir. No instante em que olhou para a anafada e maternal serva, uma surpreendente metamorfose teve lugar: a bondosa mulher transformou-se numa elegante e bonita senhora!
Atordoado, Rafael levantou-se de rompante. Sem suspeitar da sua própria transformação, a serviçal saiu lestamente do quarto, deixando um boquiaberto Rafael, sem qualquer reacção.
Este olhou para a lira conjecturando e apercebendo-se que todas as lendas eram, afinal, verdadeiras.
A partir desse dia o rapaz passou a testar a lira, obtendo resultados surpreendentes. Na vila, quase todos os habitantes sofreram transformações ao soar do instrumento; a própria natureza em redor, tornara-se mais bela e de cores mais vivas e graciosas; até os animais transmutaram a sua aparência para algo mais grandioso.
Evidente que todas estas alterações causaram enorme estardalhaço entre os habitantes, mas nada que abalasse o jovem, que até gostava de ver o circo pegar fogo sem se importar com as consequências.
E, assim, Rafael partiu em peregrinação por montes e vales, vilas, aldeias e cidades, sempre causando o mesmo efeito quando tocava a lira, no entanto, sem se deter perante a confusão que ele acarretava. A certa altura a fama já o precedia, deixando-o envaidecido.
Numa das suas paragens por uma pequena aldeia nas montanhas, deparou-se, junto a uma fonte, com uma jovem feia mas com um ar doce e delicado. Acercou-se desta e com um trejeito trocista dispôs-se a dedilhar a lira enquanto dizia: - Queres que te toque uma música? Decerto não te vais arrepender.
A jovem virou-se de imediato e respondeu-lhe: - Sei quem sois. A sua fama precede-o. E eu não tenho intenções algumas de lucrar com a sua lira mágica.
Todavia, Rafael ignorou as palavras da rapariga com um sorriso malicioso, uma atitude superior e convencido de que a sua intervenção era indispensável e que a jovem estava, na realidade, a fazer-se de difícil. Pôs a sua lira de prontidão e tocou uma de suas músicas melodiosas, observando. Enquanto as notas harmoniosas soavam no ar, tocavam a verdadeira essência da rapariga, transfigurando-a numa formosíssima donzela de rara beleza; vastos cabelos negros, ondulados e aveludados caiam-lhe como um manto, pela cintura; seus olhos, amendoados, brilhavam em tons de castanho e dourado, reluzindo com o sol como dois diamantes; as maçãs do rosto salpicavam com pequenas sardas, pintando o rosto cor de pêssego; por fim, os lábios, que ela constantemente humedecia, eram volumosos e arredondados, formando um círculo apetecível na sua boca.
Apesar de ele já ter visto inúmeras vezes modificações semelhantes em várias mulheres, jamais em tempo algum presenciara tamanha perfeição! Este feito tocou-o de uma forma tão profunda, que Rafael caiu inesperadamente de amores pela moça. Sim, o sarcástico e impiedoso Rafael que nada lhe tocava nem demovia, se apaixonou perdidamente. Perturbado por este sentimento que ele desconhecia e tomava conta dele, Rafael apressou-se a pedir desculpas gentilmente e tartamudeando, ofereceu-se para ser seu fiel escudeiro para sempre.
Mina, assim se chamava a jovem, não se deu por convencida pelos discursos de Rafael e, terminantemente, deu de costas e retirou-se. A partir dessa data, o jovem músico passou a perseguir a donzela com galanteios, serenatas e cortejos. Porém, nada conseguia dissuadir Mina. Um dia, ferido no seu ego e sem compreender porque a moça o recusava (ele que era tão bom partido), virou-se intempestivamente para ela e jogou a lira aos seus pés, exclamando: - Já que não me queres, e dizes que a lira é a causadora da tua repulsa, não a desejo mais!
A rapariga pegou na lira afastando-se silenciosamente. Entrou em sua casa e encaminhando-se para os seus aposentos, acariciou pensativamente a lira, retirando dela alguns acordes. Assim estava, sentada no seu toucador, perto de uma janela, de onde ele não arredava pé, triste e desprezado.
Apesar da arrogância, não lhe desagradara a atitude de Rafael de se ter desfeito da lira, apenas achava que ele era imaturo e necessitava de uma lição. Porém, essa consciência interior só poderia vir de Rafael e do seu coração.
Mas como fazê-lo entender que precisava de ser sensível e honesto com tudo o que o rodeava? E enquanto assim pensava, tirando acordes da lira, como por magia, Rafael metamorfoseou-se, naquele mesmo instante, perdendo toda a sua beleza e graça!
 Apercebendo-se da sua fealdade, Rafael berrou apavorado e atónito, atraindo a atenção da rapariga que veio em seu auxílio. Esta admirou-se do sucedido, pestanejando entontecida: “Como podia isto ser possível? …”
O filho de mercadores arfava, completamente desorientado e por fim, sentindo-se envergonhado da sua aparência, afastou-se correndo para bem longe da moça.


Refugiou-se numas grutas da montanha por longo período de tempo, torturado pelo sofrimento e amor que sentia e que não davam descanso ao seu coração. A humilhação assoberbava-o alternando com estados de vergonha, consternação e derrota. No período que se seguiu, o rapaz acabou por se conformar vivendo austeramente naquele local, sobrevivendo do que plantava; após essa época, acabou mesmo por tornar-se prestável a quem passava, com muita humildade e complacência, inclusivamente tornando-se benfeitor para os mais necessitados. Havia-se transformado num eremita de longas barbas e cabelos revoltos. Novamente a fama dos seus feitos espalhou-se pelas redondezas.


Cinco anos se volveram. Numa bela manhã ensolarada, Rafael achava-se a assar um peixe, pescado num riacho próximo, quando viu um vulto a aproximar-se. Os olhos do jovem barbudo ensombraram-se quando reconheceu a figura de Mina. Saudaram-se timidamente e ela estendeu um jarro de leite de cabra e um cesto com queijos, que ele aceitou polidamente:

 - Porque me vieste visitar? - Perguntou ele, fitando-a doce e tristemente.
Mina respondeu que tinha chegado há pouco tempo da cidade, para onde fora enviada por seus progenitores para completar a sua educação. Fora inteirada, após a sua volta, da vida ascética pela qual ele enveredara e, tocada, decidira visitá-lo.
 Congratulou-o pela sua nova forma de encarar a vida e interrogou-o se ele queria que ela lhe devolvesse a lira. Rafael olhou para o chão, resignado e abalado, respondendo que o instrumento de nada lhe servia se não podia usufruir do seu amor. Comovida, os olhos de Mina marejaram-se de lágrimas, pois sentia em seu coração a verdade e profundidade dos sentimentos de Rafael. Aproximou-se dele, abraçando-o ternamente e confessou-lhe amá-lo também, manifestando que a aparência não era o que realmente importava mas sim o interior de cada pessoa. O rosto do homem iluminou-se de felicidade e preparava-se para retribuir a declaração de amor, quando deu-se um grande clarão e do meio deste, surgiu um perfeito e musculado ser masculino.
Embasbacado o casal caiu de joelhos, fitando a bela aparência daquela atlética figura, trajado de túnica branca, cabelos castanhos cacheados e expressivos olhos da mesma cor. Era imponente e extremamente alto. Mina olhava-o estupefacta, não só pela sua magnificência, mas como também pela tamanha semelhança com a fisionomia de Rafael.
Com suavidade apresentou-se como sendo Apolo, o Deus do Sol, da Música e da Luz da verdade. Contou-lhes então a história da lira e da sua proveniência e de como ela fora parar à família de Rafael. E explicou aos pasmados jovens que a lira funcionara nas mãos de Mina porque esta provinha de uma linhagem familiar de Lisandra, que emigrara para aquele reino há algumas gerações.
Antes de partir, o deus dirigiu-se a Rafael congratulando-o pelo reconhecimento e expiação dos seus erros.
- Uma das maiores provas da índole de uma pessoa, é a capacidade que ela tem de demarcar a beleza interior da exterior e saber qual é de facto a mais importante. O que traz felicidade verdadeira é ter o coração aberto ao amor absoluto. – Dissertou sabiamente Apolo, num tom indulgente. E assim desvanecendo-se, abençoou aquele Amor que passara uma das mais duras provas de vida, devolvendo ao rapaz a bela aparência de outrora, pois esta já era o espelho fiel do novo Rafael.


E assim prosseguiram as suas vidas cultivando sempre a verdade, a compaixão e o amor incondicional.



FIM

Autoria de Florbela de Castro e Sophia B.R.



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