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sexta-feira, 4 de março de 2011

Conto: "Lágrimas de Pérola" - de Florbela de Castro



Nas águas do Oceano Pacífico vivia uma sereia bonita mas solitária. Perla era o seu nome. Na realidade ela vivia rodeada de familiares e amigos, mas sonhava em encontrar um amor entre os homens.

Adorava ver os veleiros e caravelas passarem, admirando o facto dos humanos terem duas pernas, além de que a beleza dos homens fazia-a suspirar. Não se tratava da falta de tritões lindos pelos mares afora, contudo nem com os da sua espécie a sua sorte era melhor. Além disso, Perla acreditava que o amor podia manifestar-se entre seres de espécies diferentes e em qualquer lugar. As suas amigas e irmãs divertiam-se com ela, quando as embarcações cruzavam aquelas águas, todavia tentavam dissuadi-la de encontrar ali um amor eterno. Porém, Perla era obstinada e persistia no seu sonho.
Mas como podia um homem apaixonar-se por ela, se nem a viam? Ora, a sereiazinha não demorou muito a encontrar uma solução para a sua dúvida. Algumas fêmeas do reino animal usavam os seus encantos e atributos para atrair o macho, então ela, a sereiazinha Perla iria usar o seu maravilhoso canto para conquistar o amor dum homem!
Só que Perla sabia que o seu canto podia tornar-se perigoso, ou mesmo fatal, para os humanos, pois tinha o poder de os enfeitiçar ao cantar certas notas e, inclusivamente, levar um navio ao naufrágio.
Apesar de ciente das consequências, Perla preferiu afastar isso da sua mente pois o anseio em arranjar um amor era maior que tudo. E com isto ela mergulhou na sua conquista. Ficou então observando as embarcações, à espera de cruzar o seu olhar com algum belo espécime de duas pernas.
Teodorico era um atraente e afectado marquês que costumava velejar por aquelas águas. Usava peruca, sapatos de salto e fivela e passava o tempo a alisar as fitas do seu fato. Apesar de afectado, Teodorico gostava de vogar.
Quando os seus olhares se cruzaram, Perla e Teodorico, apaixonaram-se instantaneamente. Contudo, Teodorico sabia o que ela era e não quis dar força aos seus devaneios. Fingia que não a via quando a sua caravela sulcava aquelas paragens, mas também não revelava à sua tripulação que avistava sempre uma sereia rondando a caravela naquela rota. Homens habituados àquelas lides, mas muito supersticiosos, entrariam em pânico ao ver a sereia.
Imaginando que Teodorico não pensava nela, e ansiosa por travar conhecimento com o vistoso humano, Perla começou a cantar. Imediatamente alguns marinheiros entraram em transe e foi o pandemónio. Uns gritavam em pânico, outros atiravam-se ao mar, os mais fortes tapavam os ouvidos tentando prender-se ao mastro, enquanto assistiam horrorizados a outros que, maquinalmente, mudavam a rota da embarcação. E Teodorico? Este, fora lesto o suficiente para tapar os ouvidos, e assistia a tudo, de sobrolho franzido. Estando a caravela desgovernada depressa encalhou num recife e afundou. 

Atónita com o rumo dos acontecimentos, Perla ainda conseguiu reagir a tempo de salvar Teodorico, levando-o até uma ilhota próxima. Após algum tempo desacordado, o Marquês recobrou os sentidos e, depois de se recompor, deu de caras com Perla que velava por ele. Furioso, ele vociferou:

-Que fazes aqui? Vai-te embora! Não vês o estrago que fizeste??
Perla ficou chocada com a reação de Teodorico. Mas ela salvara-o! Como ele era ingrato!
-Que queres de mim? – Perguntou ele, carrancudo, acrescentando que já a vira rondar muitas vezes o seu veleiro.
Perla, balbuciando, declarou o seu amor com alguma esperança. Contudo a reação do homem foi outro choque.
-E que esperas que eu faça? Que fique contigo, tu, uma sereia?? Para onde te ia levar eu? Jamais te poderia mostrar entre os meus! – E zangado acrescentou. – E escusavas de ter afundado a minha caravela e a minha tripulação! Isto é de bradar aos céus!
Envergonhada e pestanejando com a brusquidão de Teodorico, Perla ofereceu-lhe as jóias do mar como recompensa dos danos causados, mas Teodorico ignorou-a, bradando que queria sair dali. Perla afastou-se devagarinho, chorando em silêncio. Por sua vez, o Marquês construiu uma jangada, fez-se ao mar e um tempo depois foi recolhido por um veleiro.
A partir dessa altura, Perla vinha prantear naquela ilha as suas mágoas. As suas amigas, Orla e Corália, vinham consolá-la.
-Amiga, não chores. Não devias ter afundado a embarcação…Não vale a pena correr atrás de um amor e fazer tudo sem olhar às consequências. Todas as acções se voltam contra nós como uma maré revolta! – Dizia Corália por um lado.
-Força querida, és bonita, hás-de arranjar um tritão amigo e atraente! O teu Marquês não é para ti.
Mas Perla só chorava amargamente. Realmente Teodorico tinha razão. Aliás, todos tinham razão. Que adiantava perseguir um sentimento?
A partir daquele dia passou a ser uma sereia comedida, mas triste, e deixou de procurar o amor.
Por seu turno, Teodorico integrou-se num veleiro e mudou de rota. Na realidade, Teodorico, pensava nela; mas a certa altura abanava a cabeça afastando os pensamentos: “Bah, uma sereia não é futuro para mim!”
Dois anos se passaram. Na nova rota, Teodorico tornou-se mais desenvolto, robusto, despretensioso e mais alegre. Pôs de parte os pós de arroz, os carmins, os saltos, as fitas e a peruca alva. Agora usava botas de cano alto, camisa ao vento, pele morena, os cabelos escuros e ondulados, abaixo dos ombros, e a barba por fazer. Uma coisa ele usava ciosamente pendurada ao pescoço, intrigando os marinheiros: Um colar de pérolas do qual nunca se separava. Alguns achavam aquilo insólito, outros amaricado, outros encolhiam os ombros: “Esquisitices de nobres!”, pensavam no final, abanando a cabeça e embrenhando-se em seus afazeres. 


Porém numa dessas viagens, foram apanhados desprevenidos por uma tempestade de meter medo ao mais valente. A noite caiu e a tempestade não amainava. Apavorados, alguns marinheiros sentenciavam que estavam destinados ao infortúnio e que não chegariam vivos ao seu destino. Teodorico estava bastante apreensivo. Gostava de poder reconfortar a tripulação, mas não tinha controle sobre as condições climatéricas e na realidade estava certo que não saíssem vivos daquela adversidade. Acreditando estar condenado, Teodorico pensou em Perla. Subitamente ouviu-se um canto. O mar acalmou-se e quase toda a tripulação entrou em estado de hipnose, porém mantendo-se ordenada; como fantoches conduziram o veleiro através da tempestade, até uma pequena enseada, onde ancoraram. Apenas Teodorico se manteve estranhamente imune. Com o coração descompassado, Teodorico pegou num bote e foi encontrar Perla junto à praia.

Esta, no tempo decorrido, dedicara-se a salvar tantas embarcações quantas possíveis, como forma de redenção.
Teodorico olhou-a intensamente e só quando ele falou é que ela reconheceu-o.
-Sou-te grato. – Disse ele suavemente.
Perturbada pela sua presença, ela gaguejou um: “Não tem de quê” e preparava-se para nadar para longe quando Teodorico tentou impedi-la, entrando na água e alcançando-a com dificuldade.
-Perdão. – Sussurrou, beijando-a apaixonado.
O rosto de Perla banhou-se de lágrimas e ela falou: - Eu é que devo de pedir perdão! Eu amo-te mas tinhas razão, o nosso amor não tem futuro!
Teodorico apressou-se a secar-lhe as lágrimas: - Esquece o passado. Aprendi muito neste tempo longe de ti. E acredita que o amor e a esperança são essenciais na vida. Nós os dois cometemos erros no passado, contudo não devemos manter-nos presos ao pesar dessas faltas. Não me importo que sejas uma sereia, és quem és e eu amo-te assim. Só não quero que chores mais, meu amor. – E protectoramente enlaçou-a contra o seu peito num abraço terno. - Agora compreendo que não quero nem escolho viver mais longe de ti.
Perla, comovida, levantou o seu rosto para ele e naquele instante vislumbrou o colar. Pasmada perguntou-lhe onde o arranjara, como que em suspense. Teodorico acariciou as pérolas e disse que estas nada mais eram que as lágrimas dela do primeiro encontro. Estas haviam-se transformado em pérolas, ao tocar na espuma das ondas que embatiam na areia. Após ela se ter afastado, o Marquês as apanhara, guardando-as ciosamente, tendo mais tarde as transformado num colar. Perla sabia desse predicado de suas lágrimas, que se transformavam em pérolas, e ficou sensibilizada com o gesto dele, pois era sinal de que afinal ele sempre a amara.
Naquele mesmo instante, como por encanto, o mar tomou a forma de um homem, que se lhes dirigiu apresentando-se como Neptuno, governador dos Oceanos. Afavelmente este falou que estava a par do amor deles desde sempre e que gostaria de lhes dar um presente: A faculdade de Perla de ter pernas e poder andar também sobre a terra e a de Teodorico de mergulhar no mar sem perecer.
Em êxtase, os dois agarraram-se aos pés de Neptuno, desfazendo-se em agradecimentos sinceros. Este riu, bonacheirão, abençoando-os, e afastou-se dissolvendo-se nas águas, deixando Perla já metamorfoseada com duas pernas. Embevecido, Teodorico, tomou-a nos braços fazendo Perla feliz, com a certeza de que o amor e a esperança haviam vencido
todas as barreiras que os separavam.

FIM

Autoria de Florbela de Castro


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