Blogue simples e personalizado, de conteúdo essencialmente literário, dando voz tanto a autores desconhecidos como veiculando autores célebres; com pequenos focos na música, pintura, fotografia, dança, cinema, séries, traduzindo e partilhando alguns dos meus gostos pessoais.
Sejam benvindos ao meu cantinho, ao meu mundo :)

domingo, 13 de março de 2011

Açucena: CHAPTER V - 1ª Temporada - de Florbela de Castro


Açucena abriu os olhos com o sol a irromper-lhe pelas janelas. O dia já raiara, iluminando o quarto pois os pesados reposteiros nem sequer tinham sido cerrados.
A sensação de desalento já era sua companheira há muito tempo. Levantou-se maquinalmente do toucador. O espelho devolveu-lhe a sua face pálida, magra, de olhos encovados. Ao lavar-se e empoar-se recordou as nódoas negras que tinha de disfarçar. Apesar de franzina, notava-se a sua avançada gravidez. Era já a terceira. O primeiro filho não vingara e na segunda gravidez perdera a criança ao quinto mês após uma grande desavença com o marido. Édouard! Só de pensar nele, o seu coração bateu descompassado de medo. Este não se encontrava no paço, provavelmente sairá para uma noite de jogatina, ou estava com alguma das suas amantes.
Olhou novamente para a sua cara no reflexo do espelho; ia ser impossível disfarçar o inchaço daquele olho. Suspirou. Quase sentia alívio ao pensar que o marido podia estar com uma amante. Era quando vinha mais calmo.
Bateram à porta do aposento. Devia ser a criada anunciando a visita de mais um credor. Efetivamente era a criada, mas trazendo uma missiva; tratava-se de um convite para um baile no palácio Real dali a cinco semanas. Suspirou. Mais endividamentos e fingimentos em prol dos favores do Rei. Teria ela própria de costurar uma indumentária para o evento. Mas nem tecidos tinha. Talvez desse para reformar algum vestido mais antigo.
Chamou de novo a criada e com voz cansada combinou os arranjos. A criada olhou-a de alto a baixo, com ar reprovador mas amigável e disse:
-A senhora acha que está em condições de ir a algum baile? Mal se segura em pé!
-Francine, sabes perfeitamente que se eu fizer menção de não ir, Édouard arrasta-me nem que seja pelos cabelos…Sem mim ele perde influência junto ao Rei…
Açucena era muito querida pelos monarcas e já conseguira alguns favores e indulgências reais que os tinham salvo da ruína. Contudo sabiam que até a paciência do monarca tinha limites. Suspirou. Naquele momento ouviu-se o trote dum cavalo e um vozear no pátio. Era Édouard que chegara. Açucena ficou logo agitada.
Nos primeiros meses do casamento Édouard ainda fora minimamente gentil com ela. Contudo, com o tempo, tornara-se ébrio e batia-lhe com alguma frequência, tendo acessos de ciúmes totalmente infundados.
Açucena sofria muito e durante aqueles 7 anos, pensara frequentemente em Philippe. A lembrança dele trazia-lhe conforto, alento e força para ir enfrentando o momento presente e os piores momentos. Também guardava uma caixinha de música que Philippe lhe oferecera poucos anos depois de se mudar para o bairro dela. Philippe! Nunca mais soubera dele. Não sabia sequer se estava vivo ou morto. Mas preferia pensar que estava vivo, pois o contrário como que lhe tirava a vontade de continuar viva. Sim, ela sentia em seu coração que ele estava vivo. Às vezes, quando Édouard a surrava, nomeava Philippe e o amor que o professor lhe devotava, enchendo-os de impropérios.
Açucena recordava as lições do loiro professor com saudade e afeto. Não, mais que isso: com amor. Após todos aqueles anos percebera que a doença de Philippe era irrelevante. Agora, entendia tudo o que ele lhe tinha tentando transmitir na altura. Rememorava a declaração de amor de Philippe com doçura e o seu quase beijo com enleio. Como fora tonta e ingénua!
Gentilmente pegou na caixinha de música que o louro homem lhe oferecera e ficou a ouvi-la com ar doce. Sim, ela amava Philippe.
-Sentada à minha espera? – A voz de Édouard soou arrastada e irónica vinda da porta do aposento.
-Sim meu querido. – Devolveu-lhe ela com voz sumida.
Olhou-o de soslaio. Ele continuava extremamente atraente. Édouard avançava lentamente até ela, olhando-a vorazmente. Açucena ainda não se tinha vestido. O marido agarrou-a abruptamente, beijando-a sem cerimónia. Esta debateu-se um pouco devido à brusquidão. O duque atirou-a para cima da cama com violência. Açucena chorava suplicando-lhe para ele ser gentil.
-És minha! Pertences-me! – Rugiu ele fitando-a duramente. – Eu, como teu marido, possuo-te como e quando eu bem entender!
Açucena gritou com a dor. Confuso Édouard olhou para os lençóis alvos que se encharcavam com um líquido viscoso e avermelhado. A bolsa das águas rebentara e a mulher entrara em trabalho de parto.



Link da 4ª parte: http://artlira.blogspot.pt/2011/03/acucena-chapter-iv.html
Link da 6ª parte: http://artlira.blogspot.pt/2011/05/acucena-chapter-vi.html


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Açucena: CHAPTER IV - 1ª Temporada - de Florbela de Castro


Era noite alta. As bodas já haviam decorrido e as festas estavam perto do desfecho, naquele momento, talvez Açucena e Édouard estivessem já na lua-de-mel.
A lua firmava-se alta e bem perto. Philippe encontrava-se perto das margens do rio, olhando para o seu caudal fixamente, sem no entanto nada ver, tendo como pano de fundo a sobriedade de um grande convento. Encontrava-se mergulhado em um estado de apatia e resignação alternando com uma tristeza silenciosa. Lágrimas escorreram-lhe pela cara. Ergueu o rosto totalmente para o céu e acabou por fechar os olhos.
Porque a vida o castigara assim? A dor de alma que o assolava era lancinante. Açucena! Tinha de a esquecer! Tinha de mitigar aquela dor. Mas como, se Açucena era a alegria da sua existência? Seria melhor que Deus o levasse naquele momento! O seu corpo era sacudido por soluços pungentes.
-Por favor, meu Deus, fá-la feliz! Eu troco a minha vida pela feliz existência da minha amada! Leva-me! Eu não aguento mais este sofrimento, que me despedaça o coração!
-Alto! Que fazeis meu filho? – a figura de um velho frade, magro e de barba pontiaguda como as nuvens, surgiu no seu campo de visão. – Qualquer que seja o teu sofrimento não vale perderes a tua alma, acabando com a tua vida.
Philippe encarou-o perplexo por uns momentos, mas depois retrucou, entendendo-o.
-Não senhor frade, o meu desejo não é matar-me, mas sim que Deus me leve!
E confessou ao frade todas as suas mágoas.
-Meu filho, compreendo a tua dor. O teu coração é puro, é genuíno e tens uma alma nobre e generosa, capaz de amar incondicionalmente. Essa jovem parece boa moça, mas ainda não aprendeu a defender-se das artimanhas mundanas. Tem fé que um dia a tua amada alcance a razão e dê valor ao teu amor. Há coisas que nem todo o ouro do mundo paga, tais como um amor e dedicação inabaláveis quanto os teus.
-Neste momento sou um homem amargurado; perdi a fé e a esperança e sinto-me um inútil.
-Filho, não te deixes afetar por essa dor de coração que te consome. Não permitas que ela te contamine a alma também. És filho de Deus e ele não abandona os seus.
-O meu coração está completamente estilhaçado. – Retorquiu Philippe com os olhos húmidos. – Preciso sair daqui, desta cidade, deste país…
-Pode ser que eu tenha a solução para ti. – Redarguiu o frade com a cara iluminada por um sorriso misterioso.




link da 3ªparte: http://artlira.blogspot.pt/2011/03/acucena-chapter-iii.html
link da 5ªparte: http://artlira.blogspot.pt/2011/03/acucena-chapter-v.html

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Imagem da autoria de Jasmin Darnell.

Açucena: CHAPTER III - 1ª Temporada - de Florbela de Castro

Era véspera das bodas, a tarde caía. Apesar de ainda em convalescença, Philippe chamou uma charrete e dirigiu-se ao paço dos duques, a fim de parlamentar com Édouard.
Os dois homens encontraram-se nos jardins principais da propriedade. Édouard mirava Philippe com um misto de comiseração, altivez e inimizade. O atraente duque notava a beleza e porte do professor e considerou que, se não fora a cadeira de rodas, o pobre seria um bom partido… estas conjecturas atingiam o ego do vaidoso aristocrata, deixando-o um tanto arreliado. “Tolice! Philippe não possuía fortuna nem nada de seu.”
Philippe também mirava Édouard com apreensão. Bem via o quanto ele era sedutor e subjugador, pois esse atributos estavam como que gravados na fisionomia do moreno fidalgo. Alcançava agora, o quanto a inocente bem-nascida estava iludida e deslumbrada com aquele conquistador.
- Conheço a sua fama de valdevinos, Sr. Duque de … - Falou Philippe numa voz firme. – Venho lhe pedir que não faça mal a Açucena. Se for necessário desista do casamento. Açucena é uma mulher pura, delicada, honesta e ingénua. Ela…
Édouard interrompeu bruscamente com um sorriso de escárnio:
-Ora, ora, ora! Afinal a sua afeição por Açucena não é fraterna, Sr. Philippe! Muito nobre da sua parte vir até aqui vir defender a honra da donzela! – Tapou a boca com a mão num gesto teatral, enquanto arregalava os olhos, num fingido pesar. – Ooh, que digo eu? Ela não é mais donzela! ...
Philippe cerrou os punhos e apertou os lábios, indignado, e de boa vontade se levantaria da cadeira para dar uma tareia em Édouard. Este ria sarcasticamente.
-Quer-me desafiar para um duelo? – E num tom gradativamente mais provocador o fidalgo acrescentou olhando com desdém para a cadeira de rodas. – Aah, é verdade! Não pode.
E ria com gargalhadas cheias de escárnio. Philippe virou-se de costas, desolado com o facto daquele estroina já ter tocado em Açucena. A sua querida amada entregara-se àquele vilão. Viu que não tinha mais nada a fazer ali e decidiu partir.
-Já vai? Tão cedo? Que pena! – Édouard prosseguia em tom trocista. – Logo agora que a conversa estava tão boa.
E abaixando-se até Philippe, sussurrou em tom ameaçador:
-Desista, Philippe, já é tarde para si.
O homem louro afastou-se com dignidade, sem lhe responder, e abandonou o local. Meia hora depois, estava em casa de Açucena. Esta ficou surpreendida quando viu Philippe fora da cama. Sentou-se na sala de estar, junto a ele, enquanto o homem lhe pegava na mão, olhando-a nos olhos profundamente. Açucena sentiu um arrepio vindo da alma, com aquele olhar.
-Açucena, eu amo-te de verdade. Estou apaixonado por ti desde o primeiro olhar. Eu tenho a certeza que és a minha alma gémea. Sinto uma união com o teu coração, deveras flagrante. Eu sinto que tu me amas mas não reconheces o nosso amor nem o nosso valor e por isso te iludiste com Édouard. O verdadeiro amor é mais que um corpo físico e sumptuosidade. É algo que vem do coração, da alma. Está para além da vida e da morte. É o que nós somos.
Açucena escutava-o perturbada pelo que sentia em seu âmago. Naquelas palavras parecia redescobrir Philippe como um homem que sabia o que queria. A energia viril e de amor que ele emanava, entrava forte em seu coração e em todo o seu ser. Philippe aproximou perigosamente o seu rosto do de Açucena e os lábios dela começaram a tremer ao sentir o hálito quente e perfumado que saia daqueles lábios masculinos. Sentia-se afectada como nunca antes Édouard a deixara. A verdade é que a jovem nunca tinha visto o amigo de outra forma que não a de irmãos.
-Nãaao! – Gritou Açucena fugindo. Queria parar aquele momento, sentia medo do que estava a sentir e da completa confusão. – Não posso…eu estou comprometida. – E deixou-se estar a um canto.
Philippe suspirou e proferiu: - Assim seja.
À saída estacou, fitando-a intensamente, mas a rapariga não teve coragem de olhá-lo nos olhos.
Açucena não conseguia pregar olho, alvoroçada com o que sentira ao ouvir Philippe. Meu Deus, ele quase a beijara! Mas o mais insólito é que tudo isso mexera com ela de uma forma inusitada. Estaria ela tão enganada assim quanto aos seus sentimentos por Édouard. Perdeu-se assim em pensamentos que a transportaram em despiques sobre o que era estar nos braços de Édouard e o que seria estar nos braços de Philippe.
Philippe! Como este a surpreendera! E na verdade ele era extremamente belo. Mesmo, com um rosto miscelânea de feições delicadas e masculinas. Mas não! ... Ele era entrevado e de qualquer forma ela já dera a sua palavra… e o casamento era já amanhã. Talvez o tempo a ajudasse a esquecer Philippe…


E estando nestas conjeturas finalmente adormeceu.








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Açucena: CHAPTER II - 1ª Temporada - de Florbela de Castro


Apesar de ter entrado pelas traseiras, pela ala da criadagem, foi conduzida através duma enorme escadaria ao andar superior; a certa altura percebeu que fora deixada sozinha pela serviçal que a recebera e que se encarregara de a escoltar até aos aposentos da menina Camille. De repente, chocou com um vulto que caminhava apressadamente em sentido contrário ao seu.
Tratava-se de um atraente e moreno homem, de porte elegante e atlético e estatura alta, possuía olhos esverdeados e cabelos fortes, ondulados e castanhos-escuros, nariz aquilino; encontrava-se ricamente vestido.
Este mirou-a de alto a baixo, com ar malicioso e guloso; logo a seguir mudou lestamente as feições, afivelando uma máscara de distinção e pegou-lhe na mã, beijando enquanto se curvava, olhando para ela com um olhar atrevido e galante. Açucena corou até à raiz dos cabelos. O homem usava um misto de sedução e lisonja respeitosos, fitando-a com um olhar ávido e intenso, que confundiam e elevavam a jovem às nuvens. Depressa soube tratar-se de Édouard, irmão mais velho de Camille.
Durante o resto da sua estadia no palácio para a prova do vestido e a combinação dos detalhes, Açucena encontrava-se num estado de perturbação e sonho que a puseram desastrada. Fora elucidada da identidade do cortejador, por uma dama-de -companhia, que viera procurá-la, conduzindo-a aos aposentos da menina Camille.
Quando voltou para casa já era noite e qual não foi o seu espanto quando encontrou Édouard no caminho, oferecendo-se para escoltá-la a casa.
A partir dessa data o duque passou a aparecer frequentemente nas imediações da casa da jovem e pobre baronesa e apesar de actuarem com discrição, depressa chegou aos ouvidos de Philippe. Este esperou, pálido, a visita da moça e os seus olhos encheram-se de lágrimas quando obteve a confirmação da boca dela, que namorava secretamente o duque.
- Açucena, minha flor, tens a certeza de que é isso que desejas? Por favor, tem cuidado, tenho um mau pressentimento sobre isso…
- Philippe! – Repreendeu-o ela - Não acredito nisso, Édouard é um perfeito cavalheiro! Lá por eu e tu termos uma boa ligação empática, não significa que estejas certo sempre naquilo que intuis… e vais ter de me deixar de chamar isso…
Com o decorrer do tempo, o loiro professor tornou-se um homem triste e acabrunhado. As visitas a Philippe escassearam e não demorou muito até que a relação de Açucena se oficializasse com um pedido de noivado.
Quando soube da petição de mão, Philippe sentiu o seu coração despedaçar-se, banhou-se em lágrimas, tendo-se entregue ao desespero e caindo de cama, enfermo. Definhava a olhos vistos, delirava imenso ardendo em febre, chamando a sua querida Açucena. Esta veio vê-lo alarmada e a dor que sentiu era tão pungente, que se sentiu culpada pela primeira vez. Ajudou a cuidar dele, dedicada e pressurosa. O homem, mesmo inconsciente, lograva sentir as mãos de fada e o afecto da donzela, que lhe pareciam devolver a vida e a saúde. A fraternal costureira ajudou nos cuidados até perto da data da sua boda e depois teve de se ausentar devido aos preparativos.
Philippe tinha um mau pressentimento em relação ao casamento e futuro de Açucena, mas não podia fazer nada… ou quase nada.



Autor da imagem. Heise jinyao

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Link do 1º capitulo: http://artlira.blogspot.pt/2011/03/acucena-chapter-i.html
link do 3º capitulo: http://artlira.blogspot.pt/2011/03/acucena-chapter-iii.html

Açucena: CHAPTER I - 1ª temporada - de Florbela de Castro



Era uma vez uma rapariga chamada Açucena que vivia numa casa modesta e trabalhava como costureira. Açucena era muito hábil e costumava fazer lindos vestidos e fatos. Era órfã há pouco tempo; os seus progenitores eram barões arruinados, que haviam perdido tudo o que possuíam por dívidas com credores. Era comum vários nobres viverem acima das suas possibilidades, dependendo de favores reais e fazendo por ostentar uma magnificência que, com sorte e esperteza, os poderia levar ao triunfo e à abastança e com azar, os afundaria.
Açucena era de estatura quase mediana, pele entre o branco e o pêssego claro, enormes e amendoados olhos cor de mel e longo e sedoso cabelo da mesma cor, ondulado e anelado.
Perto dela vivia Philippe, um lindíssimo homem de cabelo loiro escorrido e enormes olhos azuis e voz grave. Rondava os trinta anos e trabalhava como professor e perceptor e vivia com uma governanta. Ninguém sabia exactamente das proveniências do loiro homem, visto que ele mudara-se para aquele bairro há 7 anos; no entanto falava-se que ele teria sangue dinamarquês e italiano. Isso explicaria a alta estatura e o seu porte um pouco atlético e a pele a fugir para o dourado claro. Philippe era doce, culto e honesto, mas entrevado. Ele amava discretamente Açucena. Eram bons amigos e ela até já tinha percebido o quanto ele a amava, mas não levava esse sentimento muito a sério, preferindo encará-lo como irmão. Açucena era boa moça sonhava em poder vestir os lindos vestidos que fazia e até quem sabe casar com um nobre.
Só este pensamento fazia-a sonhar. Isso e ouvir os relatos das jovens e senhoras que frequentavam os bailes de corte ou dos palacetes dos nobres; também trabalhar no meio das sedas, brocados, cetins, gazes, veludos, e arminhos, transportavam-na para fantasias líricas que ela alegremente partilhava com Philippe. Este ouvia os seus devaneios em silêncio e apenas dizia quase num murmúrio que ela deveria ficar maravilhosa dentro daqueles trajes, mais bela que todas as outras. E geralmente após esta afirmação, o seu olhar tornava-se melancólico; e ainda mais melancólico se tornava quando ela referia os seus sonhos de casar com um homem nobre.
Numa dessas vezes em que Açucena sonhava com vestidos sumptuosos e maridos ricos. Philippe perguntou-lhe:
- E o amor? Não acreditas que o amor está acima disso tudo? Não acreditas que o amor verdadeiro esteja escrito nas estrelas, desde tempos imemoriais?
Açucena estacou, olhando para ele.
- Acredito sim. E acredito que o destino me reservou uma surpresa, um “príncipe encantado” que me vai dar uma boa vida, passeios românticos e festas, belas flores pela manhã e doces momentos à noite. – Replicou sonhadora.
Philippe sentiu um nó na garganta, engoliu em seco e com uma voz um pouco rouca, interpelou:
- E porque achas que só um nobre ou um homem rico te podem dar isso?
Açucena, que se pusera a bailar sonhadora pela sala, suspirou um pouco impaciente e em tom condescendente, retorquiu:
- Philippe, sabes perfeitamente que eu e tu não somos feitos um para o outro! Eu adoro-te como irmão, és lindo e maravilhoso, mas tu não podes… - parou bruscamente e prosseguiu num tom mais doce – eu desejo ter filhos…
Abraçou-o fraternalmente, beijando-o na testa; este cerrou os olhos com enlevo enquanto aspirava o perfume da pele dela e dos seus cabelos.
- És uma alma iluminada, Philippe, decerto vais encontrar uma linda esposa! – E saiu correndo, atirando-lhe um beijo, deixando um triste Philippe a apertar os dentes.
Um belo dia, Açucena deslocou-se ao paço dos duques de Antigny. Estes tinham um casal de filhos, sendo a filha da idade dela. Ia haver uma festa e a jovem quis encomendar o seu vestido a Açucena, pela graciosidade e perfeição dos seus bordados.




Imagem:Jonathan Earl Bowser
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link do 2º capitulo:http://artlira.blogspot.pt/2011/03/acucena-chapter-ii.html

sexta-feira, 4 de março de 2011

Conto: "Lágrimas de Pérola" - de Florbela de Castro



Nas águas do Oceano Pacífico vivia uma sereia bonita mas solitária. Perla era o seu nome. Na realidade ela vivia rodeada de familiares e amigos, mas sonhava em encontrar um amor entre os homens.

Adorava ver os veleiros e caravelas passarem, admirando o facto dos humanos terem duas pernas, além de que a beleza dos homens fazia-a suspirar. Não se tratava da falta de tritões lindos pelos mares afora, contudo nem com os da sua espécie a sua sorte era melhor. Além disso, Perla acreditava que o amor podia manifestar-se entre seres de espécies diferentes e em qualquer lugar. As suas amigas e irmãs divertiam-se com ela, quando as embarcações cruzavam aquelas águas, todavia tentavam dissuadi-la de encontrar ali um amor eterno. Porém, Perla era obstinada e persistia no seu sonho.
Mas como podia um homem apaixonar-se por ela, se nem a viam? Ora, a sereiazinha não demorou muito a encontrar uma solução para a sua dúvida. Algumas fêmeas do reino animal usavam os seus encantos e atributos para atrair o macho, então ela, a sereiazinha Perla iria usar o seu maravilhoso canto para conquistar o amor dum homem!
Só que Perla sabia que o seu canto podia tornar-se perigoso, ou mesmo fatal, para os humanos, pois tinha o poder de os enfeitiçar ao cantar certas notas e, inclusivamente, levar um navio ao naufrágio.
Apesar de ciente das consequências, Perla preferiu afastar isso da sua mente pois o anseio em arranjar um amor era maior que tudo. E com isto ela mergulhou na sua conquista. Ficou então observando as embarcações, à espera de cruzar o seu olhar com algum belo espécime de duas pernas.
Teodorico era um atraente e afectado marquês que costumava velejar por aquelas águas. Usava peruca, sapatos de salto e fivela e passava o tempo a alisar as fitas do seu fato. Apesar de afectado, Teodorico gostava de vogar.
Quando os seus olhares se cruzaram, Perla e Teodorico, apaixonaram-se instantaneamente. Contudo, Teodorico sabia o que ela era e não quis dar força aos seus devaneios. Fingia que não a via quando a sua caravela sulcava aquelas paragens, mas também não revelava à sua tripulação que avistava sempre uma sereia rondando a caravela naquela rota. Homens habituados àquelas lides, mas muito supersticiosos, entrariam em pânico ao ver a sereia.
Imaginando que Teodorico não pensava nela, e ansiosa por travar conhecimento com o vistoso humano, Perla começou a cantar. Imediatamente alguns marinheiros entraram em transe e foi o pandemónio. Uns gritavam em pânico, outros atiravam-se ao mar, os mais fortes tapavam os ouvidos tentando prender-se ao mastro, enquanto assistiam horrorizados a outros que, maquinalmente, mudavam a rota da embarcação. E Teodorico? Este, fora lesto o suficiente para tapar os ouvidos, e assistia a tudo, de sobrolho franzido. Estando a caravela desgovernada depressa encalhou num recife e afundou. 

Atónita com o rumo dos acontecimentos, Perla ainda conseguiu reagir a tempo de salvar Teodorico, levando-o até uma ilhota próxima. Após algum tempo desacordado, o Marquês recobrou os sentidos e, depois de se recompor, deu de caras com Perla que velava por ele. Furioso, ele vociferou:

-Que fazes aqui? Vai-te embora! Não vês o estrago que fizeste??
Perla ficou chocada com a reação de Teodorico. Mas ela salvara-o! Como ele era ingrato!
-Que queres de mim? – Perguntou ele, carrancudo, acrescentando que já a vira rondar muitas vezes o seu veleiro.
Perla, balbuciando, declarou o seu amor com alguma esperança. Contudo a reação do homem foi outro choque.
-E que esperas que eu faça? Que fique contigo, tu, uma sereia?? Para onde te ia levar eu? Jamais te poderia mostrar entre os meus! – E zangado acrescentou. – E escusavas de ter afundado a minha caravela e a minha tripulação! Isto é de bradar aos céus!
Envergonhada e pestanejando com a brusquidão de Teodorico, Perla ofereceu-lhe as jóias do mar como recompensa dos danos causados, mas Teodorico ignorou-a, bradando que queria sair dali. Perla afastou-se devagarinho, chorando em silêncio. Por sua vez, o Marquês construiu uma jangada, fez-se ao mar e um tempo depois foi recolhido por um veleiro.
A partir dessa altura, Perla vinha prantear naquela ilha as suas mágoas. As suas amigas, Orla e Corália, vinham consolá-la.
-Amiga, não chores. Não devias ter afundado a embarcação…Não vale a pena correr atrás de um amor e fazer tudo sem olhar às consequências. Todas as acções se voltam contra nós como uma maré revolta! – Dizia Corália por um lado.
-Força querida, és bonita, hás-de arranjar um tritão amigo e atraente! O teu Marquês não é para ti.
Mas Perla só chorava amargamente. Realmente Teodorico tinha razão. Aliás, todos tinham razão. Que adiantava perseguir um sentimento?
A partir daquele dia passou a ser uma sereia comedida, mas triste, e deixou de procurar o amor.
Por seu turno, Teodorico integrou-se num veleiro e mudou de rota. Na realidade, Teodorico, pensava nela; mas a certa altura abanava a cabeça afastando os pensamentos: “Bah, uma sereia não é futuro para mim!”
Dois anos se passaram. Na nova rota, Teodorico tornou-se mais desenvolto, robusto, despretensioso e mais alegre. Pôs de parte os pós de arroz, os carmins, os saltos, as fitas e a peruca alva. Agora usava botas de cano alto, camisa ao vento, pele morena, os cabelos escuros e ondulados, abaixo dos ombros, e a barba por fazer. Uma coisa ele usava ciosamente pendurada ao pescoço, intrigando os marinheiros: Um colar de pérolas do qual nunca se separava. Alguns achavam aquilo insólito, outros amaricado, outros encolhiam os ombros: “Esquisitices de nobres!”, pensavam no final, abanando a cabeça e embrenhando-se em seus afazeres. 


Porém numa dessas viagens, foram apanhados desprevenidos por uma tempestade de meter medo ao mais valente. A noite caiu e a tempestade não amainava. Apavorados, alguns marinheiros sentenciavam que estavam destinados ao infortúnio e que não chegariam vivos ao seu destino. Teodorico estava bastante apreensivo. Gostava de poder reconfortar a tripulação, mas não tinha controle sobre as condições climatéricas e na realidade estava certo que não saíssem vivos daquela adversidade. Acreditando estar condenado, Teodorico pensou em Perla. Subitamente ouviu-se um canto. O mar acalmou-se e quase toda a tripulação entrou em estado de hipnose, porém mantendo-se ordenada; como fantoches conduziram o veleiro através da tempestade, até uma pequena enseada, onde ancoraram. Apenas Teodorico se manteve estranhamente imune. Com o coração descompassado, Teodorico pegou num bote e foi encontrar Perla junto à praia.

Esta, no tempo decorrido, dedicara-se a salvar tantas embarcações quantas possíveis, como forma de redenção.
Teodorico olhou-a intensamente e só quando ele falou é que ela reconheceu-o.
-Sou-te grato. – Disse ele suavemente.
Perturbada pela sua presença, ela gaguejou um: “Não tem de quê” e preparava-se para nadar para longe quando Teodorico tentou impedi-la, entrando na água e alcançando-a com dificuldade.
-Perdão. – Sussurrou, beijando-a apaixonado.
O rosto de Perla banhou-se de lágrimas e ela falou: - Eu é que devo de pedir perdão! Eu amo-te mas tinhas razão, o nosso amor não tem futuro!
Teodorico apressou-se a secar-lhe as lágrimas: - Esquece o passado. Aprendi muito neste tempo longe de ti. E acredita que o amor e a esperança são essenciais na vida. Nós os dois cometemos erros no passado, contudo não devemos manter-nos presos ao pesar dessas faltas. Não me importo que sejas uma sereia, és quem és e eu amo-te assim. Só não quero que chores mais, meu amor. – E protectoramente enlaçou-a contra o seu peito num abraço terno. - Agora compreendo que não quero nem escolho viver mais longe de ti.
Perla, comovida, levantou o seu rosto para ele e naquele instante vislumbrou o colar. Pasmada perguntou-lhe onde o arranjara, como que em suspense. Teodorico acariciou as pérolas e disse que estas nada mais eram que as lágrimas dela do primeiro encontro. Estas haviam-se transformado em pérolas, ao tocar na espuma das ondas que embatiam na areia. Após ela se ter afastado, o Marquês as apanhara, guardando-as ciosamente, tendo mais tarde as transformado num colar. Perla sabia desse predicado de suas lágrimas, que se transformavam em pérolas, e ficou sensibilizada com o gesto dele, pois era sinal de que afinal ele sempre a amara.
Naquele mesmo instante, como por encanto, o mar tomou a forma de um homem, que se lhes dirigiu apresentando-se como Neptuno, governador dos Oceanos. Afavelmente este falou que estava a par do amor deles desde sempre e que gostaria de lhes dar um presente: A faculdade de Perla de ter pernas e poder andar também sobre a terra e a de Teodorico de mergulhar no mar sem perecer.
Em êxtase, os dois agarraram-se aos pés de Neptuno, desfazendo-se em agradecimentos sinceros. Este riu, bonacheirão, abençoando-os, e afastou-se dissolvendo-se nas águas, deixando Perla já metamorfoseada com duas pernas. Embevecido, Teodorico, tomou-a nos braços fazendo Perla feliz, com a certeza de que o amor e a esperança haviam vencido
todas as barreiras que os separavam.

FIM

Autoria de Florbela de Castro


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Conto: "O Tocador de Lira" - de Florbela de Castro




Em tempos idos, em Esparta, na Grécia, quando os deuses tinham por hábito passear e relacionar-se com os humanos, existiu uma bela e culta jovem por quem o deus Apolo teve uma paixão e cortejou, sem no entanto revelar a sua identidade. Lisandra era o seu nome.
Num dos seus encontros secretos, nos arredores, fora do centro da pólis, Lisandra surgiu chorosa e ofegante. Contou que havia sido injuriada por um homem casado, que a quisera tomar como amante e como ela o havia recusado, este iniciara uma campanha difamatória que a pusera em maus lençóis.
A rapariga rogava por uma hipótese de se defender com equidade, mas não sabia como desmascarar o homem e sua esposa (pois esta se unira ao mesmo na campanha) e travar aquela redoma de calúnia. Apaixonado, Apolo, querendo ajudá-la a ilibar-se de todas as acusações, ofereceu-lhe a Lira da Verdade.
Esta lira tinha o dom de revelar a pura essência das pessoas, dos animais e de todas as formas de vida. Com o instrumento em sua posse, a jovem rapariga triunfou na sua busca por justiça.
Agradecida e enternecida, rendeu-se ao belo desconhecido, tendo nascido dessa entrega um lindo rapaz….


A lira permaneceu por algumas gerações na família de Lisandra, rodeada de lendas a seu respeito, até ao dia em que foi vendida pelo seu tetraneto, pois a família achava-se em grandes embaraços financeiros e o instrumento era de ouro.

Vários séculos mais tarde, noutro reino da Europa, havia uma família de mercadores, numa vila à beira mar. O comércio corria-lhes de feição, vivendo desafogados e até se podiam dar ao luxo de coleccionar objectos antigos. Por entre o espólio guardado encontrava-se uma lira muito antiga, cuja proveniência ninguém conseguia mais recordar. Contavam-se na família algumas lendas sobre o dito instrumento, contudo as mesmas eram demasiado fantasistas e poucos eram os que acreditavam. Uma das versões do mito era que quem tocasse a lira, conseguia revelar o verdadeiro interior de cada pessoa, independentemente do seu aspecto físico, mas tal feito jamais acontecera.
Rafael crescera no meio dessas lendas e objectos e tornara-se um belo homem de pele diáfana com corpo esguio, bem delineado e musculado, uns sedosos cabelos cacheados em castanho claro que lhe emolduravam o perfeito mas altivo rosto, um nariz aquilino mas não menos harmonioso, uns lábios cheios e rosados e, como um perfeito acabamento, uns cílios fartos e curvos que encimavam uns amendoados olhos verdes. Apesar de belo, Rafael era frio e distante, chegando a ser trocista, apreciando de longe toda e qualquer azáfama que presenciasse. Não se importava o suficiente com o sofrimento das pessoas, alimentando-se avidamente de querelas, pois estas lhe transmitiam uma sensação de adrenalina. O facto de não se querer envolver em quaisquer disputas só espelhava o seu caráter altivo de que ele próprio se encontrava acima de qualquer modelo.
Certo dia seu pai o mandara catalogar todo o espólio guardado no sótão da casa e ao achar a lira, reminiscências das lendas surgiram-lhe na mente como sussurros, sentindo uma vontade súbita de tocar o instrumento. Contudo conteve-se e guardou-o zelosamente nos seus aposentos.
Após a ceia, já recolhido na sua alcova, o rapaz lustrou a bela lira e dedilhou-a distraidamente, ao acaso. De repente, no seu campo de visão, a flor já murcha, plantada num vaso, que enfeitava o parapeito da janela, refloresceu viçosa e cheia de brilho! Os olhos do jovem mal podiam crer no que viam. Seria tal feito possível ou estaria ele a ter uma alucinação?
Rafael abanou a cabeça, concluindo que talvez bebera uns copos a mais durante a ceia, e continuou a arpejar as cordas da lira.
Naquele momento foi interrompido pela entrada da criada que o vinha instar a dormir. No instante em que olhou para a anafada e maternal serva, uma surpreendente metamorfose teve lugar: a bondosa mulher transformou-se numa elegante e bonita senhora!
Atordoado, Rafael levantou-se de rompante. Sem suspeitar da sua própria transformação, a serviçal saiu lestamente do quarto, deixando um boquiaberto Rafael, sem qualquer reacção.
Este olhou para a lira conjecturando e apercebendo-se que todas as lendas eram, afinal, verdadeiras.
A partir desse dia o rapaz passou a testar a lira, obtendo resultados surpreendentes. Na vila, quase todos os habitantes sofreram transformações ao soar do instrumento; a própria natureza em redor, tornara-se mais bela e de cores mais vivas e graciosas; até os animais transmutaram a sua aparência para algo mais grandioso.
Evidente que todas estas alterações causaram enorme estardalhaço entre os habitantes, mas nada que abalasse o jovem, que até gostava de ver o circo pegar fogo sem se importar com as consequências.
E, assim, Rafael partiu em peregrinação por montes e vales, vilas, aldeias e cidades, sempre causando o mesmo efeito quando tocava a lira, no entanto, sem se deter perante a confusão que ele acarretava. A certa altura a fama já o precedia, deixando-o envaidecido.
Numa das suas paragens por uma pequena aldeia nas montanhas, deparou-se, junto a uma fonte, com uma jovem feia mas com um ar doce e delicado. Acercou-se desta e com um trejeito trocista dispôs-se a dedilhar a lira enquanto dizia: - Queres que te toque uma música? Decerto não te vais arrepender.
A jovem virou-se de imediato e respondeu-lhe: - Sei quem sois. A sua fama precede-o. E eu não tenho intenções algumas de lucrar com a sua lira mágica.
Todavia, Rafael ignorou as palavras da rapariga com um sorriso malicioso, uma atitude superior e convencido de que a sua intervenção era indispensável e que a jovem estava, na realidade, a fazer-se de difícil. Pôs a sua lira de prontidão e tocou uma de suas músicas melodiosas, observando. Enquanto as notas harmoniosas soavam no ar, tocavam a verdadeira essência da rapariga, transfigurando-a numa formosíssima donzela de rara beleza; vastos cabelos negros, ondulados e aveludados caiam-lhe como um manto, pela cintura; seus olhos, amendoados, brilhavam em tons de castanho e dourado, reluzindo com o sol como dois diamantes; as maçãs do rosto salpicavam com pequenas sardas, pintando o rosto cor de pêssego; por fim, os lábios, que ela constantemente humedecia, eram volumosos e arredondados, formando um círculo apetecível na sua boca.
Apesar de ele já ter visto inúmeras vezes modificações semelhantes em várias mulheres, jamais em tempo algum presenciara tamanha perfeição! Este feito tocou-o de uma forma tão profunda, que Rafael caiu inesperadamente de amores pela moça. Sim, o sarcástico e impiedoso Rafael que nada lhe tocava nem demovia, se apaixonou perdidamente. Perturbado por este sentimento que ele desconhecia e tomava conta dele, Rafael apressou-se a pedir desculpas gentilmente e tartamudeando, ofereceu-se para ser seu fiel escudeiro para sempre.
Mina, assim se chamava a jovem, não se deu por convencida pelos discursos de Rafael e, terminantemente, deu de costas e retirou-se. A partir dessa data, o jovem músico passou a perseguir a donzela com galanteios, serenatas e cortejos. Porém, nada conseguia dissuadir Mina. Um dia, ferido no seu ego e sem compreender porque a moça o recusava (ele que era tão bom partido), virou-se intempestivamente para ela e jogou a lira aos seus pés, exclamando: - Já que não me queres, e dizes que a lira é a causadora da tua repulsa, não a desejo mais!
A rapariga pegou na lira afastando-se silenciosamente. Entrou em sua casa e encaminhando-se para os seus aposentos, acariciou pensativamente a lira, retirando dela alguns acordes. Assim estava, sentada no seu toucador, perto de uma janela, de onde ele não arredava pé, triste e desprezado.
Apesar da arrogância, não lhe desagradara a atitude de Rafael de se ter desfeito da lira, apenas achava que ele era imaturo e necessitava de uma lição. Porém, essa consciência interior só poderia vir de Rafael e do seu coração.
Mas como fazê-lo entender que precisava de ser sensível e honesto com tudo o que o rodeava? E enquanto assim pensava, tirando acordes da lira, como por magia, Rafael metamorfoseou-se, naquele mesmo instante, perdendo toda a sua beleza e graça!
 Apercebendo-se da sua fealdade, Rafael berrou apavorado e atónito, atraindo a atenção da rapariga que veio em seu auxílio. Esta admirou-se do sucedido, pestanejando entontecida: “Como podia isto ser possível? …”
O filho de mercadores arfava, completamente desorientado e por fim, sentindo-se envergonhado da sua aparência, afastou-se correndo para bem longe da moça.


Refugiou-se numas grutas da montanha por longo período de tempo, torturado pelo sofrimento e amor que sentia e que não davam descanso ao seu coração. A humilhação assoberbava-o alternando com estados de vergonha, consternação e derrota. No período que se seguiu, o rapaz acabou por se conformar vivendo austeramente naquele local, sobrevivendo do que plantava; após essa época, acabou mesmo por tornar-se prestável a quem passava, com muita humildade e complacência, inclusivamente tornando-se benfeitor para os mais necessitados. Havia-se transformado num eremita de longas barbas e cabelos revoltos. Novamente a fama dos seus feitos espalhou-se pelas redondezas.


Cinco anos se volveram. Numa bela manhã ensolarada, Rafael achava-se a assar um peixe, pescado num riacho próximo, quando viu um vulto a aproximar-se. Os olhos do jovem barbudo ensombraram-se quando reconheceu a figura de Mina. Saudaram-se timidamente e ela estendeu um jarro de leite de cabra e um cesto com queijos, que ele aceitou polidamente:

 - Porque me vieste visitar? - Perguntou ele, fitando-a doce e tristemente.
Mina respondeu que tinha chegado há pouco tempo da cidade, para onde fora enviada por seus progenitores para completar a sua educação. Fora inteirada, após a sua volta, da vida ascética pela qual ele enveredara e, tocada, decidira visitá-lo.
 Congratulou-o pela sua nova forma de encarar a vida e interrogou-o se ele queria que ela lhe devolvesse a lira. Rafael olhou para o chão, resignado e abalado, respondendo que o instrumento de nada lhe servia se não podia usufruir do seu amor. Comovida, os olhos de Mina marejaram-se de lágrimas, pois sentia em seu coração a verdade e profundidade dos sentimentos de Rafael. Aproximou-se dele, abraçando-o ternamente e confessou-lhe amá-lo também, manifestando que a aparência não era o que realmente importava mas sim o interior de cada pessoa. O rosto do homem iluminou-se de felicidade e preparava-se para retribuir a declaração de amor, quando deu-se um grande clarão e do meio deste, surgiu um perfeito e musculado ser masculino.
Embasbacado o casal caiu de joelhos, fitando a bela aparência daquela atlética figura, trajado de túnica branca, cabelos castanhos cacheados e expressivos olhos da mesma cor. Era imponente e extremamente alto. Mina olhava-o estupefacta, não só pela sua magnificência, mas como também pela tamanha semelhança com a fisionomia de Rafael.
Com suavidade apresentou-se como sendo Apolo, o Deus do Sol, da Música e da Luz da verdade. Contou-lhes então a história da lira e da sua proveniência e de como ela fora parar à família de Rafael. E explicou aos pasmados jovens que a lira funcionara nas mãos de Mina porque esta provinha de uma linhagem familiar de Lisandra, que emigrara para aquele reino há algumas gerações.
Antes de partir, o deus dirigiu-se a Rafael congratulando-o pelo reconhecimento e expiação dos seus erros.
- Uma das maiores provas da índole de uma pessoa, é a capacidade que ela tem de demarcar a beleza interior da exterior e saber qual é de facto a mais importante. O que traz felicidade verdadeira é ter o coração aberto ao amor absoluto. – Dissertou sabiamente Apolo, num tom indulgente. E assim desvanecendo-se, abençoou aquele Amor que passara uma das mais duras provas de vida, devolvendo ao rapaz a bela aparência de outrora, pois esta já era o espelho fiel do novo Rafael.


E assim prosseguiram as suas vidas cultivando sempre a verdade, a compaixão e o amor incondicional.



FIM

Autoria de Florbela de Castro e Sophia B.R.



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