Intrigado ele pôs-se a caminho. Sentia-se, a um tempo, aliviado, esperançado e oprimido. Mas porquê oprimido? Nem ele próprio sabia explicar o que a sua voz interior lhe tentava avisar.
Chegado à aldeia, facilmente conseguiu capturar o maravilhoso rapaz e com ele rumou para o seu palácio. O jovem, de coração de ouro e alma cristalina, possuía uma rara beleza. Pele diáfana, cabelos loiros de reflexos dourados, feições suaves e doces e os olhos eram castanhos, tão claros e límpidos que quase se assemelhavam a ouro em fusão. Era alto, mas não corpulento.
Julgava Alexander que de alguma forma miraculosa os predicados do precioso rapaz passariam para si. Sentia-se poderoso e regozijava-se interiormente com o desfecho.
Contudo o que o pintor não esperava era que Nathalie, quando esta se acercou do rapaz de coração de ouro e alma cristalina, encantara-se por ele. Este parecia corresponder-lhe, tratando-a com simplicidade e dedicação. A cada dia que passava, iam-se tornando mais unidos.
Ferido pelo ciúme e raiva, Alexander congeminava em separá-los e acabou por seguir um impulso desastroso. Decidiu apunhalar vilmente o rapaz, para assim arrancar-lhe o coração e a alma e torna-los definitivamente seus. Não podia suportar aquela afronta!
Um dia avistou-se com o rapaz nos jardins e puxou de uma adaga para tentar desferir um golpe cobarde e fatal. Nesse momento o céu escureceu, trovejou, o palácio desmoronou-se, os criados desapareceram e Nathalie tombou fulminada. Ferido, o rapaz de ouro e alma cristalina bradou:
-Porque fizeste isso. Acaso julgas que uma boa alma se compra ou se rouba?
Logo a seguir fez-se ouvir um riso estridente da feiticeira.
-Incauto! Perdeste tudo e perdeste-te a ti. E porquê? Por um rabo de saia? O amor é para os tolos. – E rindo a bandeiras despregadas, a voz desapareceu.
Aterrado, Alexander balbuciou:
-Mas tu disseste que tudo aconteceria naturalmente.
Contudo foi o rapaz de coração de ouro e alma cristalina que lhe respondeu.
-Sim, e aconteceu. Ao encontrar Nathalie despertei nela o sentido do amor verdadeiro. Nathalie foi criada por ti mas não tinha um coração para amar. No entanto ela é uma parte de ti mas ao encontrar-me aconteceria a fusão com a alma cristalina e o coração de ouro. Agora que atentaste contra a vida o poder de criar já não é mais teu. – E dito isto o rapaz afastou-se, partindo para a floresta.
Alvoraçado e incrédulo, Alexander procurou tintas e pincéis nos escombros, tentando pintar. Porém, após o raiar de um novo dia, nada se transformou.
Agora estava sem dom, sem amor, sem tecto, sem bens, se casa, sem nada.
O jovem pintor vagueou chorando e soluçando dias a fio as suas mágoas e penas. Só queria morrer e após caminhar exaustivamente, deixou-se cair no solo, onde mergulhou num estado febril. Prdeu a noção do tempo.
Assim permaneceu, definhando. Não procurou ajuda, mas também não o podia pois encontrava-se demasiado fraco.
Ali perto ouvia-se rumorejar das águas de um rio, as folhas das árvores dançavam ao sabor do vento produzindo um som fresco; alguns pássaros trinavam nas redondezas.
Por entre os seus olhos enevoados, Alexander julgou vislumbrar umuma silhueta masculina; assemelhava-se a o rapaz de ouro e alma cristalina, contudo parecia rodeá-lo uma auréola luminosa. O rapaz ajudou-o dedicadamente naquele momento de fraqueza e debilidade. Permaneceu o tempo necessário e para além da sua convalescença. Por fim o pintor já se encontrava restabelecido. Durante aquele período de tempo pouco haviam falado, mas a atmosfera entre os dois sempre fora leve e calmante. Porém Alexander pensara muito na sua vida e resolvera partir em peregrinação. Como que lhe lendo os pensamentos, o rapaz perguntou:
- Acaso desejas fugir de ti mesmo?
O jovem de cabelos negros olhou-o perplexo por uns momentos.
-Preciso pensar, encontrar-me. Porque estou vivo?... Qual o meu lugar aqui?... Porque nasci? Eu só queria…
As palavras morreram-lhe na garganta. Engoliu em seco.
- E Natalie?... – perguntou o rapaz suavemente.
- Natahalie está perdida para sempre! – Os seus olhos negros encheram-se de lágrimas - Ela já não está mais entre nós e a culpa é minha! Nathalie está perdida para mim. Não a mereço. Mas também não consigo viver com esta dor. De ora em diante viverei só para expiar as minhas culpas e longe daqui.
E virando-se lentamente para o companheiro, acrescentou:- Apesar de eu não merecer, sei que és especial e podes ajudar-me a concretizar esta minha decisão…
- Alimentares mágoas e culpas não te vai trazer paz interior, nem é o melhor caminho. Contudo respeito a tua decisão. A partir de hoje correrás mundo levando contigo o coração de ouro. Nathalie não está perdida e o Poder Maior conceder-lhe-á a Alma Cristalina e voltará a viver. Nada mais te posso dizer sobre ela. A não ser que consigas fazer a Verdadeira Reunião.
Tal como previsto o ex-pintor correu mundo. Durante anos percorreu países onde a neve era uma constante e outros onde o estio se perlongava; palmilhou montes, montanhas e vales, planícies e planaltos; atravessou rios, lagos, mares e oceanos; conheceu bosques, florestas e desertos.
Ao longo dos tempos conheceu também pessoas de todos os géneros e raças e culturas, sempre sentindo o seu coração de ouro agir como um magneto nesses encontros. Ao início isto parecera-lhe estranho pois ele sempre fora adverso à convivência, mas com o passar dos anos e das aprendizagens, sentia-se unificado com este.
Havendo decorrido 20 anos, Alexander estabelecera-se há cinco anos no Oriente, num Oásis com uma povoação considerável, alojada. Tornara-se vendedor de tecidos e trajava-se como os demais. Apesar do seu ofício, muitas pessoas vinham pedir-lhe conselhos e ouvi-lo falar. A sua fama espalhou-se por terras longínquas. Forasteiros vinham ouvi-lo falar e pedir orientações.
Um dia ouviu-se falar de uma peregrina que teria o dom de curar as pessoas.
Essa peregrina acabou por ocupar lugar como sacerdotisa num tempo na periferia do Oásis. Porém a mesma não era bem vista pela comunidade que murmurava entre si se ela seria realmente uma curandeira ou na verdade uma maga. Dizia-se que os pacientes que a visitavam voltavam fascinados, principalmente os homens.
Isto causou burburinho entre o povo, especialmente nas mulheres e mães de família. Os falatórios rápido subiram de tom. Alexander tentava acalmar o povo que se reunia em ajuntamentos no mercado local. Não conhecia a dita mulher contudo sentia-se no dever de trazer a harmonia e o bom senso à população. Porém desta vez ninguém deu-lhe ouvidos. As desavenças multiplicavam-se em tom crescente até que num dia em que o sol brilhava numa intensidade chamejante, o tumulto aconteceu. Homens viraram-se contra mulheres, famílias discutiam, amigos defrontavam-se, até o caos se instalar definitivamente no mercado. Alexander assistia a tudo estarrecido Os confrontos tornaram-se de tal forma incontroláveis que fizeram deflagrar um incêndio que se propagou por todo o Oásis!
Em pânico centenas de pessoas fugiam para o deserto, tentando salvar haveres e outros conterrâneos. O terror gerado pela violência das labaredas, causara um efeito de choque, levando todos os habitantes à atitude de união. Alexander certificou-se que todos saiam a salvo.
De repente lembrou-se da peregrina. Estaria ainda no Templo já tomado pelas chamas? Correu para lá, cruzando-se com o último grupo de pessoas em fuga. Um dos membros desse grupo, um mendigo, ao vê-lo dirigir-se para o Templo exclamou:
-Vais salvar a mulher de Alma Cristalina? Então tens de correr como o vento. – Alexander esbugalhou os olhos ao som destas palavras.
Seria possível?...
No interior do Tempol, já deserto, encontrou Nathalie desanimada, pegou nela e correu lesto dali. Já fora do alcance das labaredas estacou esbaforido, ansiando que ela acordasse, insuflando ar para os seus pulmões e ela aos poucos voltou a si.
Felizes pelo reencontro conduziram o povo pelo deserto onde a certa altura depararam-se com o rapaz de coração de ouro e alma cristalina.
-Sou um Anjo. – Revelou este – E venho conduzir-vos para a Nova Terra.
Todos exultaram e enquanto o anjo estendeu uma tela, pincéis e uma palete a Alexander, dizendo a este para pintar.
Então o pintor criou uma belíssima cidade como um arco-íris, cuja entrada era uma gruta. Tudo apareceu imediatamente ali no Deserto.
Extasiados e felizes todos festejaram, enquanto Alexander e Nathalie agradeciam ao anjo. Este presenteou-os com uma bola de luz e sorrindo disse:
-Agora sim, está efectuada a fusão do coração de ouro e da alma cristalina porque vocês se reencontraram e estão prontos para se unirem como casal nesta cidade paradisíaca. – E dito isto voou para longe enquanto o casal lhe acenava de mãos dadas.
FIM
Autoria de Florbela de Castro
Link da 1ª parte:
http://artlira.blogspot.pt/2011/11/conto-o-pintor-de-quadros-1-parte.html
Pode compartilhar livremente a obra desde que respeite os creditos.
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