"To my Eternal Love"
No tempo das perucas altas e alvas, num país com neve, mas de montanhas floridas chamado Áustria, vivia um sapateiro solitário, de nome Gerard. Este geria o negócio de família, herdado há gerações, contudo no presente momento já não lhe restavam mais parentes e vivia só. Desde há uma década que exercia o ofício de sapateiro, que incluía oficina e loja de rua, porém, na actualidade, debatia-secom dificuldades, pois o seu calçado vendia pouco, situação não igualada aos tempos áureos em que seus avós e pais governavam essa actividade. Ele até modernizara os seus instrumentos de trabalho e a loja, feito em que gastara parte do dinheiro amealhado pela família e que já fora despendido em parte nas doenças de seus pais, que haviam requerido viagens constantes à montanha.
Gerard já passava dos 40 anos, contudo já era calvo, os seus restantes cabelos eram claros e possuía olhos esverdeados, usava óculos, tinha um pouco de barriga mas não era encorpado. Na sua adolescência até tinha boa figura mas depressa se havia desfigurado. Os seus ajudantes, moços ainda de verde juventude, riam-se à socapa da pouco graciosa silhueta do patrão. “Seria por isso que não teria clientela?”
Ainda assim Gerard era um hábil sapateiro, todavia só conseguia vender a sua produção para pessoas com poucas posses. Nem ricos mercadores, nem fidalgos adquiriam as suas obras.
Numa bela noite de primavera, Gerard trabalhava numas botas de pele encomendada spor um caixeiro-viajante, oportunidade rara dum bom negócio.
Acerta altura a sua faca de sapateiro, chamada trinchete, partiu-se em dois.“C’um os diabos!”, Gerard fitava admirado o utensílio: - Como foi isto partir??...
Ainda magicando no assunto, lembrou-se de ir à cave da loja buscar a tesoura usada por seus pais e avós no corte do couro e tecidos para o calçado, posta de lado desde a reforma de todo o negócio. E se bem o pensou, melhor o fez, terminando o corte do modelo com a antiga tesoura. Devido ao adiantado da hora Gerard não entregou o serviço às gaspeadeiras e coseu ele próprio as botas com muito primor. No final da tarefa admirou o seu trabalho satisfeito.
No dia seguinte, veio o caixeiro-viajante buscar a encomenda, pagou o preço justo e partiu para o seu destino.
Uma semana mais tarde, ainda Gerard dormia quando alguém madrugadoramente bateu à porta, com insistência.
Ensonado,o sapateiro foi abrir. Um homem de vestes abastadas adentrou a loja e retirou ochapéu, revelando ser o caixeiro-viajante da semana anterior.
Entusiasmado,o forasteiro contou ao perplexo sapateiro como a sua vida se transformara radicalmente no espaço de 7 dias, desde que calçara as botas feitas por Gerard. Fizera de tal forma bom negócio que se tinha conseguido estabelecer na cidade vizinha e com muito sucesso.
-Era o meu maior desejo – confidenciou com vivacidade o ex-caixeiro-viajante – visto que sou natural de lá.
E empolgado encomendou um par de sapatos a Gerard que permanecia um tanto ou quanto incrédulo. Mas como o cliente estava a apagar adiantado, o artífice nem pestanejou.
E novamente pôs mãos à obra. Também, pudera, há uma semana que só fazia pequenos arranjos.
Novamenteo caixeiro-viajante retornou no dia seguinte para vir buscar a sua preciosa encomenda. Alegremente se despediu de Gerard.
Uma semana depois a cena repetiu-se e o forasteiro estava de volta, desta vez acompanhado duma senhora, que este apresentou como sua esposa. Nesta ocasião encomendaram um par de calçado para cada um, com a finalidade de acorrerem a um baile no palacete dum barão, para o qual haviam sido convidados, exactamente após o ex-caixeiro calçar os sapatos manufacturados por Gerard.
Espantado,mas já menos descrente, Gerard pôs as mãos ao trabalho. Laborou afincadamente nas suas encomendas e três dias depois o casal comparecia para levar o calçado e deixar uma quantia generosa. Gerard agradeceu efusivamente enquanto que o forasteiro, já seu conhecido, afiançava:
-Tem aqui um cliente e amigo para a vida. O calçado feito por si, são verdadeiras obras-primas que têm o condão de nos conduzir aos nossos desejos.
Despediu-se alegremente deixando Gerard a pensar. Tudo aquilo parecia-lhe fazer sentido,no entanto, o que ele estranhava um pouco era como o caixeiro sabia e houvera descoberto realmente que o calçado tinha propriedades mágicas. Contudo reservou as suas interrogações para um dia mais tarde serem esclarecidas.
A fama de Gerard foi-se espalhando e os clientes e as encomendas aumentaram consideravelmente. As pessoas eram em geral abastadas e voltavam sempre para mais encomendas ou indicando alguém, contando como os seus pares de sapatos modificavam suas vidas.
Numa das suas deslocações pela cidade para comprar mais tecidos e peles, Gerard passou por um palacete e reviu uma linda mulher jovem, de quem ele ao longo dos anos sempre se encantara, através das vidraças duma janela. Como era bela! Gerard suspirou à vista daquela figura graciosa por si admirada ao longo dos tempos. Contudo achava-se demasiado feio para conseguir chamar-lhe a atenção. Acabrunhado foi à sua vida.
Ocasionalmente,o sapateiro voltou a ver a dita donzela e contemplava-a ao longe sem nunca ter coragem de tomar uma iniciativa.
Elsa de seu nome, era uma jovem fidalga de beleza tipicamente germânica; cabelos loiros quase platinados, olhos dum azul semelhante a uma turquesa cinzelada, de pele alva, faces levemente ruborizadas; esguia, o que fazia com que a sua estatura mediana a fizesse parecer mais alta. Elsa não primava pela simpatia e o seu porte altivo de queixo afilado e sorriso que não desmantelava as sua sfeições de boneca de cera, corroboravam esses atributos da sua personalidade.
Gerard já a conhecia de vista desde jovem mas devido à diferença de estatuto jamais tivera o ensejo de a conhecer pessoalmente. Com o passar da vida, arrumara essa recordação tão deliciosa, que o tempo trouxera de volta.
Porém desta vez Elsa, não saía da sua cabeça. Sonhava em poder cortejá-la, passear com ela, mostrá-la ao mundo, ao seu lado.
Inesperadamente,um dia a figura graciosa de Elsa irrompeu pela sua loja! Fazia-se acompanhar por mais uma senhora jovem e por uma senhora de idade. Gerard a custo conseguiu disfarçar a sua perturbação.
Encomendaram lindos sapatos para um baile enorme dado no Paço Real a fim de anunciar o noivado do jovem Príncipe.
Elsa tagarelava entusiasmada com as outras duas senhoras agindo como se nem sequer visse Gerard. Este sentiu-se acabrunhado. Decerto se fosse rico e belo como o príncipe teria todas as mulheres aos seus pés.
Devido à magnitude e importância do evento muita gente importante iria comparecer no baile.
Um par de dias depois, Gerard recebeu uma missiva que descobriu ser do seu tão bem conhecido caixeiro-viajante convidando-o para se deslocar à sua cidade natal para uma encomenda de calçado para o baile real.
Nesse mesmo dia pôs-se a caminho; tomou uma carruagem de passageiros que viajou durante algumas horas até o centro da cidade vizinha. A noite já caia e Gerard ainda tinha de se dirigir para os lados de uma aldeia perto da montanha. Alugou um burro e partiu para a segunda etapa do trajeto apesar dos murmúrios e resmungos do estalajadeiro onde alugara o animal, avisando-o da distância e dos perigos da montanha e das entidades sobrenaturais que nele habitavam. O sapateiro seguiu com um encolher de ombros.
Consigo transportava um farnel, o seu banquinho, a tesoura, agulha, linha e várias amostras de peles e tecidos. Já tinham avançado cerca de uma hora quando caiu uma tempestade seca com rajadas fortes, trovões e relâmpagos.
Passou por uma vedação e pensou abrigar-se da tormenta que se avizinhava. Um intenso relâmpago revelou a presença de uma linda camponesa. O rosto feminino pareceu-lhe surreal. Fios negros pendiam desarranjados num coque solto emoldurando o rosto esguio e oval de um tom leitoso e aveludado. Os lábios carnudos e redondos tinham um tom rosa-cereja completando o quadro de beleza que pairava como uma miragem na sua frente. Gaguejando inquiriu onde era o palacete do caixeiro-viajante. A jovem apontou-lhe o caminho dizendo que após virar a colina encontraria a única habitação das redondezas, não havia que enganar, era só mais meia hora de caminho. Tão depressa o homem olhou para a frente para ver direções como ao retornar o olhar a jovem havia se eclipsado!
Foi já debaixo de uma chuva fustigante que se encontrou perante um castelo, um tempo depois. Não cruzou com vivalma nos pátios e entrou por uma ala lateral. O sapateiro sentia-se confuso e atónito com a magnificência do interior do castelo onde habitava o seu amigo caixeiro-viajante.
O castelo era profusamente ornado a ouro e mármores raros. A cada passo podia encontrar do bom e do melhor. Veludos da Prússia, tapetes da Pérsia, sedas da China, porcelanas de Limoges, cristais de Boémia…
Encontrou mesa posta, servida em salva de prata, e cama feita em alvos lençóis de Cambraia.
(Continua)
Autoria de Florbela de Castro
Link da 2a parte- final :http://artlira.blogspot.pt/2012/12/conto-o-sapateiro-e-tesoura-magica-2.html
Pode compartilhar livremente a obra desde que respeite os creditos.
Todos os direitos reservados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário